A sensação de impunidade frente os diversos escândalos envolvendo a classe política brasileira, mais notadamente a partir da Lava Jato, bem como a tentativa de nomeação do ex-presidente Lula para Ministro da Casa Civil no início do ano reacenderam o debate sobre o foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado.
Há dezenas de propostas tramitando no Congresso que estabelecem possíveis modificações da prerrogativa, mas antes é preciso analisar as origens do dispositivo.
O instituto jurídico foi contemplado inicialmente pela Constituição de 1824, quando se conferia ao Senado competência para conhecer dos delitos individuais praticados pelos membros da Família Real, Ministros, Conselheiros, Senadores e Deputados. Para muitos, representa uma garantia à prática de atos de administração pública, legitimados pela soberania popular.
Porém, de lá para cá, o instituto não apenas se manteve, como se ampliou, chegando atualmente a cerca de 20.000 políticos com direito ao benefício, a partir de dezenove hipóteses do privilégio (arts. 29, X; 102, I, b e c; 105, I, a; e 108, I, a 7 da Constituição Federal). Clique no quadro para verificar os cargos que tem prerrogativa de foro por função:
Esse instituto jurídico permite que ações penais contra determinadas autoridades tramitem nos tribunais, e não nos juízos de primeira instância. Assim, um cidadão que se eleja prefeito, deputado federal e governador, (comum em políticos de carreira) faz um eventual processo ser remetido do Tribunal de Justiça para o STF e em seguida para o STJ. Tudo isso produz investigações fragmentadas, prescrição e impunidade.
Para se ter ideia, entre os anos de 1988 e 2007, estudo da Associação dos Magistrados Brasileiros demonstrou que nenhuma das 130 ações criminais iniciadas no STF contra autoridades que tem o foro privilegiado resultou em condenação (a primeira veio após mais de um século da criação da corte!); já no STJ, desde 1989, quando foi criado, tramitaram 483 ações penais, das quais apenas 5 condenações. Levantamento da Folha de São Paulo demonstrou que em 96,5% dos casos não há nenhuma punição a um parlamentar réu. Um verdadeiro show de impunidade.
Vale ressaltar que constituições de outros países admitem o instituto, todavia, em nenhum deles com a amplitude consignada no Brasil. Já nos Estados Unidos não há prerrogativa de função, motivo pelo qual o então presidente americano Bill Clinton, quando acusado de assédio sexual, foi julgado por um juiz de 1º grau, por exemplo.
O Ministro do STF Luís Roberto Barroso já manifestou-se a favor de uma reforma: “trata-se de uma reminiscência aristocrática genuinamente nacional, sem réplicas de abrangência comparável em outras democracias”. Ele defende que apenas os cargos de presidente da República e o Vice, os presidentes do Senado, da Câmara e do STF, e o procurador-geral da República deveriam conservar o foro especial no STF.
Salienta-se que o foro privilegiado é uma oportunidade para verdadeiras malandragens jurídicas, permitidas por lei: há os que procuram se eleger para mudar a competência do órgão que vai julgá-los, que passa do primeiro grau para o STF; há quem deixa de se candidatar, depois de processado no STF, a fim de fazer o processo baixar para sua área de influência; há os que renunciam ao mandato no último segundo buscando manipular o sistema e alterando o órgão competente para julgamento, como tentou Natan Donadon (na oportunidade, o STF entendeu que houve abuso de direito e fraude processual, pois a renúncia visava retirar os juízes naturais de seu processo, sendo o ato administrativo nulo. STF. Plenário. AP 396/RO, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 28/10/2010).
A nomeação de Lula com a finalidade de não ser julgado pelo juiz natural da demanda (conforme ficou evidenciado em suas conversas divulgadas com a então presidente Dilma Rousseff) foi uma evidente tentativa de fraude processual, algo não apenas repugnante, mas desmoralizante para as instituições. (Sobre o caso em específico, recomenda-se esse artigo de Vladimir Passos de Freitas e esse outro de Ilan Presser).
Por fim, o foro por prerrogativa de função desafia o senso comum de Justiça por tratar de forma diferente determinadas pessoas, algo que fere a isonomia, sendo algo totalmente anti-republicano. Nesse sentido, há quem defenda sua inconstitucionalidade por “viola (r) frontalmente o Estado Democrático que tem por alicerce a igualdade”.
Longe de representar uma prerrogativa de defesa e preservação funcional da autoridade objetivo para o qual foi originalmente concebido, o instituto do foro privilegiado, ao longo da história, tem se transfigurado em um inconcebível privilégio, vez que tem sido recorrentemente utilizado como instrumento de preservação da impunidade por agentes políticos e servidores públicos, em diferentes esferas e Poderes do Estado.
Em um país que quer verdadeiramente combater a corrupção, é necessária a eliminação do foro privilegiado. Ademais, precisamos de um Poder Judiciário mais efetivo e eficiente, pois é a celeridade em decisões punitivas que diminuem a noção de impunidade da população.
1 Comentário
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Concordo plenamente em acabar parcialmente com as prerrogativas, porque tem que haver algumas, isso tudo envolve muita pilantragem. Ou então, vamos copiar dos Estados Unidos, sem prerrogativas de função e acabar com esses autos salários. continuar lendo